“A PREOCUPAÇÃO COM O ABANDONO E DETERIORAÇÃO DO MERCADO PÚBLICO DE PORTO ALEGRE EM 1990, FOI O ESTOPIM PARA UM OLHAR MAIS AMPLO, CRÍTICO E MOBILIZADOR, PARA A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO HISTÓRICO/CULTURAL EM TODA A CIDADE” ; Eduíno de Mattos.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro – SUL21.
ARTIGO
GESTÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL URBANO DE PORTO ALEGRE NO SÉCULO XX
No Brasil, as políticas públicas em nível municipal, relativas à preservação do patrimônio cultural edificado, se efetivaram através de leis de tombamento e/ou instrumentos de planejamento urbano – planos diretores, leis de uso do solo, e outros. Duas capitais meridionais – Porto Alegre e Florianópolis, foram pioneiras ao apresentarem os dois mecanismos – leis de tombamento e planos diretores – em favor da preservação. Várias outras preservaram o seu patrimônio edificado apenas através de leis urbanísticas. Algumas utilizaram, unicamente, a lei especifica de proteção.
Em geral, o poder público garantiu a participação indireta da população através dos conselhos municipais de preservação do patrimônio. A participação direta foi, aos poucos, se construindo, associada à redemocratização da sociedade brasileira. Porto Alegre reflete essas mudanças desde a década de 70 e apresenta particularidades na sua trajetória, especialmente no final do século XX.
Em Porto Alegre, a trajetória da preservação iniciou-se em 1938, quando a Igreja das Dores e o acervo do Museu Júlio de Castilhos foram tombados como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Após essas primeiras iniciativas, houve um hiato nos tombamentos em nível nacional. Apenas nos anos 1960 foi protegida uma nova edificação – o Solar dos Câmara. A antiga sede dos Correios e Telégrafos, o Portão do Cais do Porto com os dois armazéns laterais foram tombados na década de 80 e o Palacete Argentina na década seguinte. Recentemente, foram aprovados pelo Conselho Consultivo do IPHAN os tombamentos do Observatório Astronômico e da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Sítio Histórico das Praças da Matriz e da Alfândega. Ampliou-se, assim, o reconhecimento nacional sobre o patrimônio da cidade, que se refletiu, particularmente, no acervo de edificações historicistas construídas na virada para o século XX.
O Governo do Estado, por sua vez, promulgou a Lei de Tombamento em 1978, inspirada no Decreto-Lei nº. 25/1937. Até o momento, foram protegidos, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado – IPHAE, cerca de dezoito bens, além da Praça da Matriz e seu entorno, que envolvem vários espaços e edificações. Invariavelmente, tratam-se de bens de propriedade pública.
As ações do poder público municipal ocorreram como conseqüência da Reunião de Governadores em Brasília, no início dos anos 70, com a finalidade de descentralizar as ações de preservação do patrimônio cultural brasileiro que, até aquele momento, eram prerrogativa do Governo Federal. A partir daí, foram implantados diversos mecanismos em benefício da preservação do patrimônio cultural porto-alegrense, com ênfase no patrimônio edificado. As particularidades dessa trajetória estão presentes desde a origem do processo, pois partiu da Câmara de Vereadores, através da Lei Orgânica, a determinação de que cabia ao executivo municipal realizar, no prazo de um ano, o levantamento dos bens imóveis de valor histórico e cultural para a cidade, visando a futuros tombamentos e declarações de utilidade pública.
Para realizar o trabalho, em 1971 foi nomeada uma comissão formada por funcionários municipais, que identificou cinqüenta e nove bens arquitetônicos e elementos ornamentais dispersos na cidade. Três anos depois, nova comissão revisou a listagem anterior. A comissão destacou, dentre outros, os “prédios modestos”, e aqueles que apresentavam “as linhas puras e simples da construção colonial de nossa região”. Os bens selecionados pelas duas comissões não representavam apenas os poderes constituídos – Estado, Igreja e as classes econômicas dominantes mas, principalmente, a sociedade local, através de suas residências, estabelecimentos comerciais, etc. Pode-se dizer que o trabalho das comissões municipais buscou a construção de uma “memória local”.
A partir daí, houve uma multiplicidade de mecanismos voltados à preservação, envolvendo a promulgação de leis específicas, a inserção do tema nas leis urbanísticas e a realização de ações de conservação e valorização do acervo dos bens patrimoniais edificados. Sucederam-se listagens, leis e decretos, a criação do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural – COMPAHC, do Fundo do Patrimônio Histórico e Cultural – FUMPAHC e da Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural – EPAHC, dentre outros.
Nota-se que as políticas públicas municipais em relação aos bens patrimoniais, desde o início, não reproduziram o imaginário consagrado pelo Governo Federal. Nas discussões sobre o projeto da lei de tombamento municipal, aprovada em 1979, a primeira sugestão do COMPAHC foi retirar a palavra “excepcional” que constava na lei federal. Entre os mais de sessenta bens protegidos a partir de então, encontram-se, na maior parte, conjuntos arquitetônicos residenciais, assim como “uma casinha”, “um cortiço”, “uma casa de construção mista”, tornando diversificado o acervo tombado pelo município. O Paço Municipal e algumas igrejas tombadas representam os bens consagrados – aqueles que podem ser considerados “excepcionais” no contexto da cidade.
No que se refere ao planejamento urbano, à preservação passou a ser incorporada efetivamente a partir do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU, de 1979. Quase duas mil edificações foram listadas como “de interesse sociocultural”, atendendo a critérios de valor arquitetônico, tradicional ou evocativo, ambiental (no sentido de paisagístico), de uso atual, de acessibilidade, de conservação, de recorrência regional e/ou raridade formal, raridade funcional, risco de desaparecimento, antigüidade e valor de compatibilização com a estrutura urbana. Essa classificação representava uma possibilidade de preservação, pois alguns artigos do plano previam possibilidades de benefícios através de índices urbanísticos. Em geral, as negociações resultaram na preservação de uma parte das edificações – normalmente a fachada, acrescida de alguns metros do volume original. Não raro, provocaram soluções descontextualizadas em relação ao tecido urbano.
No recentemente aprovado Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental – PDDUA, o detalhamento das áreas de interesse patrimonial definiu valores segundo instâncias de ordem cultural, morfológica, paisagística e funcional, propostas pelos técnicos da EPAHC e da Faculdade de Arquitetura Ritter dos Reis. Como exemplo, no primeiro caso, são avaliadas pelos técnicos as práticas sociais, relações de vizinhança, significado social, referência histórica e reconhecimento oficial do acervo. Esse trabalho implicou uma grande ampliação geográfica das áreas a serem preservadas pelo Plano em relação ao anterior. Do ponto de vista do planejamento urbano, com o tempo, ocorreu uma ampliação de conceitos, onde as práticas e significados ligados à memória coletiva passaram a ocupar um lugar antes destinado, quase exclusivamente, aos critérios estéticos e de excepcionalidade.
A participação dos cidadãos no processo de preservação da memória da cidade iniciou-se nos anos 1960, quando intelectuais começam a se manifestar através da imprensa e a constituir um “campo do patrimônio” na cidade, segundo Giovanaz (1999), embora houvesse manifestações isoladas anteriormente. Na década seguinte, o arquiteto e historiador Francisco Riopardense de Macedo destaca a luta pela conservação da Capela do Bom Fim como um marco emblemático na luta pela preservação, pois, pela primeira vez, houve uma mobilização ampla, gerada na Faculdade de Arquitetura da UFRGS.
Arquitetos e outros intelectuais passaram a se manifestar, na imprensa, a favor da preservação de diversas edificações significativas da cidade – a Farmácia Carvalho e o Cinema Guarany, a Capela do Bom Fim, o Solar Lopo Gonçalves. As campanhas para a preservação do Mercado Público e da Usina do Gasômetro também foram intensas. Os adjetivos utilizados para designar as edificações objeto das campanhas de preservação pelos jornais quase nunca argumentavam sobre a monumentalidade ou uma eventual qualidade arquitetônica excepcional desses bens. Os valores referidos eram a “história de uma comunidade humilde” e a “arquitetura simples” – no caso da Capela; “prédio sem valor arquitetônico” para o velho mercado; o “velho prédio” da Usina – “sem belezas arquitetônicas” mas que ainda podia ser útil; o velho Solar de “graciosa simplicidade”. As referências relacionam-se mais à necessidade de preservação dos marcos da memória coletiva do que a eventuais qualidades estéticas dessas edificações. Assim, os valores destacados aproximam-se daqueles ressaltados pelas comissões municipais.
A década de 1980 parece ser a de consagração da participação da sociedade. O “abraço” à Usina do Gasômetro foi um momento emblemático na mobilização em defesa da identidade da cidade. Surgem iniciativas através de abaixo-assinados. Os primeiros bens tombados a partir desse instrumento fazem parte de um conjunto de residências na Rua Félix da Cunha. O documento foi idealizado por um grupo de arquitetos proprietários de alguns desses imóveis, que corriam risco de demolição.
Nos anos 1990, intensificaram-se as solicitações de tombamento através de abaixo-assinados. Os documentos procuravam ressaltar a importância estética, arquitetônica e histórica dos bens a serem preservados. Normalmente empregavam expressões coletivas – “nossa cidade”, “nossos antepassados”, “nós cidadãos portoalegrenses”… A antiga fábrica de discos “A Elétrica” foi tombada a partir de um abaixo-assinado promovido pelos músicos do Estado. Seguiu-se a proteção à residência De Boni – residência de um engenheiro italiano que legou obras significativas à cidade e que também teve origem num documento coletivo. Outros processos ainda em tramitação na Prefeitura Municipal tiveram a mesma origem.
O fato novo ocorrido em Porto Alegre foi que, às iniciativas anteriores, somou-se o olhar dos cidadãos não intelectuais – dos moradores de bairros populares, anônimos na cidade, e que passam a tomar a iniciativa de se manifestar em favor de um patrimônio coletivo. Isso ocorre a partir da eleição da Frente Popular liderada pelo PT, quando os espaços de participação começaram a ser ampliados no município. A prioridade para aplicação dos recursos orçamentários passou a ser discutida através do Orçamento Participativo – OP, em plenárias regionais e temáticas. Cabe esclarecer que o OP foi o mais importante fórum de participação dos cidadãos na gestão da cidade até 2005, voltado principalmente à definição orçamentária anual. Inicialmente, a organização se baseava apenas na divisão em regiões – as plenárias geográficas. Posteriormente, foram acrescentadas plenárias temáticas – Educação, Cultura e outras. Foi instituído o Projeto Porto Alegre Mais – Cidade Constituinte, canal que visava à participação no planejamento da cidade e que deu origem aos Congressos da Cidade. Fóruns de participação específicos na área da cultura também foram criados, como as Conferências Municipais da Cultura, e instrumentos de financiamento de projetos culturais como o FUMPROARTE.
A partir dessas interfaces maiores de participação, percebeu-se o surgimento de demandas sobre a preservação do patrimônio cultural. No que se refere a tombamentos, foram feitas demandas no OP em relação ao “Atacado do Nestor” (estabelecimento comercial popular), Terreira da Tribo (sede de um grupo de teatro alternativo), Hotel Cassino em Belém Novo, Igreja N.S. de Belém Velho. A Vila Nova foi a região que mais efetivou demandas de tombamentos: o Moinho Monteggia; a antiga ponte do trem; a sede do Clube de Futebol Periquito (sede da antiga Cooperativa); a casa de pedra da família Passuelo; e a edificação conhecida como “barracão” – uma loja comercial. Nenhuma resultou em inscrição no Livro-tombo do município até agora.
É interessante notar que as demandas não se restringiram a solicitações de tombamento e restaurações, mas também ao projeto Memória dos Bairros, que se destina a registrar a história oral dos moradores da cidade. Tornou-se o tipo de demanda mais solicitada na área da cultura no OP. Também houve casos que demonstraram a preocupação com a inserção do patrimônio no cotidiano das populações locais, como foi o caso de demandas referentes à implantação de Museus Comunitários e do Centro de Referência Negra.
Os espaços de participação passaram a apresentar temas relacionados à memória coletiva, sendo que nas políticas públicas específicas a preocupação maior sempre foi com o patrimônio edificado. Por outro lado, segundo entrevistas realizadas com delegados e conselheiros, se não houvessem políticas públicas voltadas à participação na gestão da cidade as demandas populares não teriam espaço para serem reivindicadas. Mesmo reconhecendo as limitações do processo, há uma unanimidade no sentido de que os espaços de participação constituem instâncias essenciais para a legitimação das solicitações. Nos depoimentos colhidos não há uma conotação saudosista, mas sim a afirmação consciente sobre o papel que o patrimônio pode desempenhar como patamar de referência para a construção do futuro. Essa convicção de que se trata de um processo explica a persistência das regiões, que apresentam e reapresentam, no ano seguinte, caso não sejam aprovadas, as demandas referentes ao tema.
- O tombamento do Atacado do Nestor – solicitado pela região do Pártenon no O.P., demandou investimento dos conselheiros para fotografar, pesquisar a história da edificação e redigir um documento para explicar a demanda. Embora a edificação não se situasse no bairro, mas na área central, a região estava disposta a arcar com os custos do tombamento e da recuperação com capital que poderia ser empregado em outras prioridades locais. Diz o conselheiro da região Pártenon – Sr. Eduíno de Mattos, que:
“Os conselheiros aprovaram a restauração do Mercado Público no O.P. em 92 (…) Depois a gente começou a se preocupar com outros prédios (…) Comecei a me preocupar com a questão dos museus – o nosso acervo histórico estava jogado em tudo que era canto, apodrecendo. Teria que ter um local adequado, com técnicos competentes para cuidar desse acervo. E também informatizar, micro-filmar coisas para não se perderem (…) Depois de toda essa discussão, eu me dei conta de que tinha um prédio bastante importante, ali na esquina da Voluntários com a Pinto Bandeira, onde está o Atacado do Nestor, que foi um prédio bastante histórico para a cidade na questão do comércio (…) Não sou técnico na área, mas me dá a impressão que é uma construção com estilo europeu que estava desmoronando (…) Foi levada [a demanda] inicialmente para uma plenária do Conselho do Pártenon e depois ela passou pelo fórum de delegados e foi até o final pelas intermediárias. A aceitação foi unânime (…) E o Conselho aprovou unanimemente (…) E é isso que nós temos que trabalhar, que as regiões indiquem o que tem que ser tombado. E esse é um trabalho novo, que nós temos que fazer no O.P. – que cada região faça a indicação do que quer preservar, do que quer tombar para a cidade. O governo vai ter que acatar isso.” (MARQUES apud MEIRA, 2004.p.117).
Percebe-se que a discussão continuada sobre a cidade nos fóruns de participação permitiu que as atenções extrapolassem das necessidades locais, expandindo-se para temas mais fundamentais, de interesse geral. O conselheiro situa a preocupação com a preservação dos valores culturais depois que se adquire a visão ampla dos conhecimentos sobre a cidade, que ele compara à abertura de um “leque”, a um processo de “oxigenação”. A constatação identifica um dos principais logros do O.P. e que provavelmente não estava explicitado em seus objetivos iniciais: resulta na tomada de consciência pelos participantes da cidade como um todo.
Foi realizada outra entrevista com a Sra. Arlete Mazzo – presidente da associação dos moradores da Vila Nova, que já foi delegada e conselheira do OP pela região Centro-Sul e responsável pelo encaminhamento das cinco demandas de tombamentos no bairro citadas anteriormente. Sobre as motivações que levaram o bairro a fazer as demandas dos tombamentos pelo OP ela responde que:
“Patrimônio para nós é uma questão importante porque nós somos uma comunidade antiga, uma comunidade centenária (…) mais na área da produção agrícola. Mas esses produtores e as pessoas que vieram com eles [os imigrantes] construíram prédios belíssimos e também tem toda uma história – por exemplo o moinho de produção de cereais e que nós gostaríamos de preservar(…) A nossa intenção não era só tombar – era tombar, restaurar e desenvolver um centro de atividades culturais, educativas e de lazer (…) dar ele de volta para a comunidade (…) Porque é para garantir a memória, é para deixar viva toda essa história.” (MAZZO apud MEIRA, 2004.p.124).
Os tombamentos solicitados pela Vila Nova documentam a origem do bairro e são, também, imagens coletivas no sentido em que retratam a situação de todos que ali moravam: ligados ao cultivo da terra. A comunidade sentiu necessidade, além de contar a sua história – registrada no trabalho inaugural da série Memória dos Bairros, de mostrá-la ao restante da cidade. A intenção é manter vivas essas imagens “para mostrar a história que passou” (MAZZO apud MEIRA, 2004.p.124). As imagens transmitidas pelos bens patrimoniais são relacionadas ao trabalho – seja por estarem diretamente ligadas à produção agrícola, como o Moinho, seja por representarem um esforço coletivo de desenvolvimento, como a Cooperativa, ou por mostrarem a rusticidade da vida rural, na casa de pedra. Mas não se trata de uma visão saudosista, pois a preservação é vista como um processo que inicia com o tombamento ao qual se sucede a restauração, o desenvolvimento e a utilização posterior do bem patrimonial – sem concessões a uma atitude contemplativa. Sobre o processo relacionado à preservação do patrimônio da Vila Nova no OP, a Sra. Arlete relata:
“Esse moinho foi construído pelos fundadores da comunidade – o Vicente Monteggia (…) A demanda foi priorizada pela região, mas a região não priorizou o tema da cultura. A cultura sempre ficou aí por 8º lugar. Há anos que ela aparece como demanda, como 1ª classificada sempre – o moinho. Aí nós fomos na temática e aí na temática a gente conseguiu colocar bem e aí foi conquistado o tombamento (…) Se não houvesse o OP, não teria como encaminhar com certeza . Nós iríamos buscar na Secretaria de Cultura? Quem nos atenderia? Que espaço nos daria? Até de repente poderia ter alguma pessoa interessada lá que nos daria espaço, mas (…) O primeiro momento do OP foi isso: tu vais buscar alguma coisa para o teu umbigo, para o teu bairro. Depois de um ou dois anos que tu estás nesse movimento, começa a entender que tu não mora numa ilha, que tu mora numa cidade que tem outros bairros, que essa cidade faz parte de um outro espaço que tem outras culturas, que tem gente que pensa diferente de ti, que tu tens que respeitar as suas vontades, que tu tens as tuas vontades que tem de ser respeitadas. É uma troca de experiência, uma troca de vida – de vida. Tem muitas coisas que tem que ser mudadas, algumas coisas já foram mudadas, outras ficaram para trás, outras que acrescentaram.” (MAZZO apud MEIRA, 2004.p.125).
Em relação às demandas nos fóruns de participação, tem-se uma concentração nos anos de 1997 e 1998 nas plenárias regionais e, a partir de então, começam a aparecer as mesmas demandas nas plenárias temáticas. Apesar do estudo ter se concentrado sobre os bens edificados, é interessante referir novamente a ampliação das demandas na área da memória coletiva que começaram a ocorrer. Os entrevistados observaram que o espaço propiciado pelo OP foi fundamental para que as demandas originadas entre os cidadãos de camadas populares tivessem um espaço de legitimação, embora reconheçam que existam dificuldades na concretização das demandas citadas. Sobre as Memórias dos Bairros, o conselheiro Eduíno dá o seu parecer:
“Porto Alegre é como se fosse o Brasil – as pessoas que moram no 4º Distrito pensam diferente das que moram na zona sul (…). Mas o pensamento de todos acaba convergindo. A Lomba do Pinheiro é um bairro novo, muito novo, de muitas ocupações irregulares e um bairro pobre, mas a preocupação deles já com o histórico da Lomba, apesar de ser recente, é muito grande. Eles trabalharam há pouco tempo a questão do resgate histórico através do Memória dos Bairros.(…) Então há interesse em saber porque aquelas pessoas estão ali, como é que foi antes, então isso aí expandiu bastante. (…) E também a Chácara da Fumaça, que eu achei mais interessante ainda por ser uma ocupação mais recente que a Lomba do Pinheiro de pessoas humildes, de escolaridade baixa, e houve um grande interesse dessa população em saber o histórico da Chácara da Fumaça. Eu para mim, uma das partes mais importantes das memórias dos bairros é porque que uma população humilde, com baixa escolaridade, se interessou tanto por saber o histórico da área, da região e também da cidade (…) Acho que a questão que despertou a curiosidade da população de saber mais é oriundo da participação. Isso aí nem se discute, né. É a participação que desencadeia essa vontade de conhecer (…) porque na participação a pessoa mais humilde, mais pobre, da periferia (…) Quando ela começa a participar ela vê que ela tem um potencial de inteligência para contribuir com a cidade e até para conhecer mais. Uma das particularidades do ser humano é a vontade do conhecimento. Todas as pessoas tem vontade de saber mais. Então, eu acho que essa oportunidade na participação da pessoa passar a conhecer mais, era uma oportunidade que eles estavam esperando há muito tempo”. (MARQUES apud MEIRA, 2004.p.119).
Com relação às Conferências Municipais de Cultura, houve a aprovação dos pedidos referentes à proteção da Esquina Democrática, apresentado pela EPAHC, e à Terreira da Tribo, apresentado por entidades ligadas às artes cênicas. A Esquina Democrática – situada no centro da cidade foi a única demanda de tombamento efetivada até o momento, cuja origem foi um fórum de participação. Na 2ª Conferência houve uma retração das demandas do campo do patrimônio. No FUMPROARTE também podem ser identificadas ações de preservação das memórias específicas das diversas áreas da cultura.
Os Congressos da Cidade também foram espaços que contemplaram o tema – especialmente o primeiro realizado em 1993. Uma das diretrizes aprovadas relacionava-se à identificação e classificação, ou seja, ao inventário do patrimônio ambiental (patrimônio cultural e natural entendidos de forma integrada e indissociável), através do conhecimento com vistas à preservação e valorização dos elementos que o compõem. Engloba espaços de convivência, edificações, flora, fauna, sítios paisagísticos, tecnologias patrimoniais e valores simbólicos e se refere à necessidade de levar em consideração não só a percepção dos técnicos, mas também a dos habitantes sobre este patrimônio.
Em geral, nota-se uma diferença no tratamento do patrimônio edificado ao longo de diferentes décadas com diferentes atores. As comissões instituídas pelo poder público se referiam aos bens patrimoniais listados como o acervo que sobrou. Os intelectuais que se manifestavam pelos jornais a partir dos anos 1960 se referem a um acervo remanescente sem significado arquitetônico – a velhas edificações que, no entanto, são apontadas como marcos da memória da cidade. É comum o afastamento da noção de bem excepcional que levou, desde o início, ao estabelecimento de um patamar constituído por bens não consagrados, embora não os excluíssem. Já os abaixo-assinados buscaram exaltar as qualidades estéticas e históricas dos bens patrimoniais objetos das solicitações de tombamento. Há que se destacar a atuação de intelectuais nesses processos e, especialmente, de arquitetos.
Mesmo caindo no risco de fazer uma simplificação excessiva, pode-se dizer que, comparando os discursos dos cidadãos nas décadas de 1970 a 80 com o discurso dos cidadãos que se manifestam coletivamente, a partir de abaixo-assinados ou nos espaços de participação os anos 1990, nota-se que não é mais o “resto” , nem o “velho” que se busca preservar, mas sim aquilo que é “nosso”. Isso porque “para nós tem uma história no caminho”, como disse a conselheira Arlete Mazzo.
Foi referido pelos entrevistados que, através da discussão continuada sobre a cidade “abre-se um leque”, “oxigena-se”, “deixa-se de olhar para o próprio umbigo”, quer se “conhecer mais” e se conscientiza sobre a experiência de viver numa cidade. Essa percepção conduz, naturalmente, à preocupação com o ambiente, no qual se insere o patrimônio cultural. Em outras palavras, o sentimento de pertencimento que se constrói nesses processos de discussão tem como um de seus ganhos a reconstrução permanente do passado como patamar de referência. Se pensarmos que muitas demandas relacionadas às referências patrimoniais das comunidades locais têm emergido nos espaços de participação, pode-se conjecturar que a democratização seja a resposta para os processos de “conscientização” tão acalentados pelos preservacionistas.
Isso ajuda a entender como as comunidades locais passaram a se preocupar com o tema sem que tenham sido realizados programas de “conscientização” sobre o patrimônio. No que se refere às solicitações de tombamento nos espaços de participação, nota-se que são manifestações espontâneas no sentido de não terem sido geradas por intelectuais. Falam sempre no coletivo e demonstram uma preocupação com a cidade como um todo. Para finalizar, é importante retomar o pensamento do conselheiro Eduíno, quando diz que “essas duas coisas têm que ser aliadas: o conhecimento científico, técnico, e a sabedoria popular. Só dessa forma nós vamos conseguir enriquecer o processo” (MARQUES apud MEIRA, 2004.p.122).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GIOVANAZ, Marlise. Lugares de história : a preservação patrimonial na cidade de Porto Alegre (1960-1979). Porto Alegre: UFRGS, 1999. Disertação (Mestrado em História) Faculdade de História, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1999.
Foto Reprodução: Eduíno de Mattos.
- MEIRA, Ana Lúcia Goelzer. O passado no futuro da cidade. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2004.
[1][1] Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Av. Independência, 867 – CEP 90035-076 – Porto Alegre – RS
Eduíno de Mattos